Em suas palavras, a paixão pela arte e a dedicação à vida nos revelam um universo onde imperam a sensibilidade e o encantamento. Onde o desconhecido nos ampara e conduz à reflexão de nossas crenças e vontades. Abaixo uma entrevista, com entrevistador violonista Geraldo Vianna para Egberto Gismonti.
Geraldo Vianna - Você é um dos poucos, no mundo todo, que executa com destreza e virtuosismo dois instrumentos de técnicas tão antagônicas como o violão e o piano, respeitando suas respectivas linguagens. Como foi o processo de evolução técnico-musical nos dois instrumentos e como você se relaciona e dialoga com as dificuldades e exigências de cada um deles no dia-a-dia?
Egberto Gismonti - Sua pergunta possibilita várias respostas, ou, vários caminhos às respostas. Seguirei o caminho da natureza de ser instrumentalista – de ter o privilégio de tocar a minha vida e não um instrumento.
Meu pai de descendência Árabe (Líbano, Beirute, aristocracia, piano) e minha mãe de descendência Italiana (Catânia, serenata, violão) tiveram grande influência nas minhas decisões durante a juventude. Eles me ensinaram que para experimentar a liberdade, eu e meus irmãos deveríamos diversificar o aprendizado de matérias enquanto meninos e jovens: alfabetização - 1º grau, ao mesmo tempo que iniciação musical, estudo da língua Francesa e contabilidade.
Mais tarde, considerando cada matéria como uma janela para ver e perceber o mundo, entendi a relação da liberdade através da informação, cultura e trabalho.
Mais adiante percebi que o risco de “pretender” fazer o que não sabia estava ligado diretamente a esse processo de educação – o risco passou a fazer parte integrante dos meus sonhos e realizações. Daí chegar a tocar dois instrumentos com desenvoltura e naturalidade, e estudar outros (flauta, clarineta, cello, acordeão) para desenvolver a escrita musical, passou a ser natural e conseqüência direta da educação nos períodos de infância e juventude.
Em seus shows e recitais, você consegue levar e enlevar o público, da apreciação do extremo virtuosismo à contemplação do “belo” na simplicidade musical. Como compositor e instrumentista você se considera um “Apolíneo” (que se caracteriza pelo equilíbrio, disciplina etc.) ou Dionisíaco (que se caracteriza pelo instintivo, espontaneidade)?
Nós somos miscigenados, os seres extremos e contrários vivem na mesma pessoa. Por isso somos praticantes do “ser plural” – heterônimos - Fernando Pessoa. Não me considero Apolíneo ou Dionisíaco, poderia me considerar Aposíaco ou Dionilíneo.
A propósito da questão espiritual na música, você acha que se trata de uma condição anterior ao aprendizado que, juntamente com este, vai se desenvolvendo, ou a própria música conduz o músico do estado “tosco” e não lapidado ao estado de profunda sensibilidade?
Posso falar somente do que vivo e, neste caso, a resposta é não. A relação espiritual está na crença e na reverência ao que não existe para a visão, o tato, o olfato – existe para a sensação de visão, de tato e de olfato. A MÚSICA é minha companheira, meu oriente, minha reverência. A audição de composições que ainda estavam inexistentes, pelo canal do sopro inexistente, me faz seguro de que ELA está conduzindo minha vida e norteando minhas decisões.
Você, como um artista do mundo, vivendo num momento, talvez caótico do ponto de vista sócio-político-cultural, o que espera da música e da arte em geral? Você acha que haverá uma evolução estilística e uma produção que influencie e estimule, à criação, as gerações vindouras?
O que move o homem são suas crenças, suas verdades e suas necessidades. Se existirem necessidades de evolução nas crenças, verdades e necessidades dos que ouvem música (público, músicos e compositores), a evolução estará garantida. Senão...
O que você classifica de “boa música” e o que você diria àqueles que pretendem exercer o ofício e a arte de tocar e compor?
Respondo a essa questão de maneira simples e objetiva: Acredito que existem somente dois tipos de música: a que preciso e a que não preciso. Lembro que as necessidades mudam durante a vida, anos, meses ou semanas – com elas, com as mudanças, as necessidades, as coisas que precisamos.
Quais são suas “referências” na arte, pessoas que em algum momento o fizeram refletir e optar por determinado caminho?
As minhas referências são variadas:
Alguns músicos:
Gesualdo, Bach, Mozart, Stravinsky, Carlos Gomes, Villa-Lobos, Santoro, Guarnieri, Radamés, Pixinguinha, Jacó, Baden, Tom, Chico, Luis Eça, entre outros;Pensadores: Jean Genet, Ouspenski, Gurdjieff, Oliver Sacks, Pessoa, Manoel de Barros, Pe. Antonio Vieira, Haroldo de Campos, entre outros;
Instigadores: Sapain, Raoni, Olímpio (sertanista), Zeneida Lima - pajé cabocla, entre outros;
Artistas plásticos: Portinari, Di Cavalcanti, Ventura, Antonio Dias, Augusto Rodrigues, Euridyce, entre outros; a lista é grande e cabe sempre mais um.
Você poderia citar quatro obras musicais (com respectivos autores), que considera fundamentais para aqueles que pretendem engendrar no mundo da música?
Não posso imaginar como as pessoas são ou o que desejam escutar como referência. Posso citar alguns compositores:
Gesualdo: precursor do cromatismo; imagine ter a audição do que não existe!Bach: como a música foi ligada, conectada ao sagrado e se tornou MÚSICA!
Mozart: prova viva de que o “gênio” é plural, bem humorado, extrai razão de expressão de qualquer situação, e, pode ser jovem, muito jovem como Mozart.
Stravinsky: ousadia, conhecimento, juventude, mistura de linguagens popular e erudito, ritmo, rito, ritmo.
Villa-Lobos: uso do folclore e da música popular assumidos para criação da música culta Brasileira.
Baden: inventor do violão brasileiro, afro e mestiço, do violão que todos nós tocamos hoje. Etc...
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